quinta-feira, 21 de novembro de 2013

ARTIGO DE OPINIÃO - MARCELO CAIXETA


MECANISMOS “SECRETOS” DO ESTADO PARA FORÇAR TODO MÉDICO A VIRAR “MÉDICO DO GOVERNO”. ( e porque você ainda vai ser vítima disto ) 
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Caro leitor(a), se o Governo tiver bem feito seu marketing politiqueiro, nesta altura do campeonato você terá uma firme convicção : “médico não quer trabalhar no SUS porque lida com “pobreza fedida”, ganha pouco e não tem regalias”.
 
Este argumento eu derrubo com um simples fato : no hospital filantrópico psiquiátrico que eu dirijo tenho, hoje, três médicos que trabalham com pobreza, sem recurso nenhum (hospital bem pobre) e ganhando 2.000 reais por mês. São eles : C.M.V, V.M.C, A.C.V, e, se vocês quiserem, me comuniquem - marcelofcaixeta@gmail.com - que posso citar, in off, o nome completo deles (não o faço aqui para não expô-los, basta eu ). São médicos que estão recusando receber até 15 mil reais em empregos do SUS. Vocês têm todo o direito, então, de me perguntarem: "Por que ocorre este fenômeno? Como ocorre?" Não é nada fácil explicar, mas vamos lá.

Ao contrário do que você e 99% da população brasileira podem estar pensando (depois das propagandas enganosas do Governo ), grande parte dos médicos não é gananciosa. Se fossem gananciosos por dinheiro fácil, estariam é estudando Direito para fazer concurso público. Com o tanto que um médico estuda (concursos de vestibular, residências, provas de títulos, especializações, necessidade de atualização constante, etc ) poderia, facilmente, estar tendo a vida de um juiz ou promotor. É claro que, como tem todo lugar, há sim os gananciosos. Mas o que o médico, como estes três aí acima, tem mais ganância é de uma coisa: poder ver o resultado de uma ciência que demoraram tanto para aprender. Esta é a melhor recompensa para qualquer médico e este é o motivo principal pelo qual estão debandando do SUS : no sistema público de saúde não podem exercer esta salutar “ganância”. Aliás, vocês se surpreenderiam de ver o número de médicos que ganham muito bem no sistema público de saúde mas que o deixam às moscas para trabalharem em outros lugares, não para ganhar dinheiro, mas simplesmente para “poder trabalhar com eficiência e em paz”. 

Eu mesmo conheço um médico que ganha 13 mil reais no serviço público, mas quase não vai lá, para correr logo para um serviço filantrópico, onde atende a mesma pobreza, faz o mesmíssimo serviço que deveria fazer no público, e de graça. Ele me diz : “Marcelo, eu incomodo tanto lá que a minha chefe, que é uma psicóloga, me disse: “Fulano, você incomoda tanto que nós vamos pagar para você ficar em casa”. Ele continua dizendo: “Não vou lesar o sistema público, minha consciência não deixa, então deixo o serviço público pra lá (continuo recebendo pois não vou jogar meu concurso público fora) e vou para o filantrópico, pois lá eu posso trabalhar”. Este “fulano” incomoda muito simplesmente porque quer fazer um bom trabalho e isto é impossível no sistema público, mesmo com dinheiro a rodo (ao contrário do que apregoam, o problema da saúde pública não é falta de dinheiro). Este colega é cárdio-cirurgião, mas no seu serviço, que repito, é dirigido por uma psicóloga “militante do partido”, apesar de ter centro cirúrgico, aparelhos modernos, instrumentos cirúrgicos, etc, nada funciona ( pelo menos ao nível de complexidade exigido por uma cirurgia cardíaca). 

Os médicos que estão lá, fazendo de conta que estão “tocando o serviço”, estão apenas reinando sobre um monte de lixo, só estão mesmo segurando um posto, visando status (p.ex.,“ somos professores de universidade”), poder político ( “aqui estou ajudando o partidão” ), benesses (p.ex. “verbas para pesquisas, congressos, bolsas, etc” ) , ou poderzinho (o cara pensa assim : “mesmo sendo um incompetente, um sem-caráter, sem-afeto, sem-carisma, aqui posso exercer meu “poderzinho pessoal”, posso mandar em colegas, posso ter voz nas “intermináveis reuniões”, posso ser “presidente de mesas-redondas em solenidades e congressos”, etc “). Como este cardio-cirurgião que citei aí acima, a maioria dos médicos têm uma “mente obsessiva”, uma mente que gosta da realização, e da realização bem feita, com resultados. Isto não é possível no SUS, a não ser que você tenha um poder político muito grande ou uma casca muito grossa, coisa que pouco médico tem. 

A prática médica exige uma complexidade muito grande para “dar certo” e isto não é possível dentro do gerenciamento do SUS, um lugar onde as chefias são indicadas politicamente, onde o que manda não é a necessidade do profissional (muitos estão lá só por cabide-de-emprego ), onde não pode haver hierarquia técnica (“aqui não é só o médico, aqui todos podem mandar”), onde não há meritocracia científica ( “ciência é um instrumento anti-democrático de opressão”), onde não há gerenciamento institucional ( “isto aqui é de todo mundo”), onde não há busca de resultados ( “é mais importante termos votação direta para diretor, ou seja, benesses para os funcionários, do que eficiência para o público”), onde não há a “autoridade de quem mais estuda e quem mais trabalha” ( “aqui somos contra toda forma de “autoridade”, vejam no que deu a “ditadura militar”, o nazismo, etc “). O funcionamento hospitalar pode ser comparado, em termos de complexidade, ao de uma companhia aérea : se não houver muita ciência e muito gerenciamento, o avião cai . Imagine, no Brasil, o Governo tocando uma empresa aérea : iriam colocar a copeira para pilotar o Boeing. Por “democratite” , iriam dizer que “não é só o piloto não que pode pilotar o avião”. Se não tivessem copeiros para arriscarem-se a pilotar, iriam contratar mecânicos de bicicleta da ilha de Fidel. 

Em Medicina, assim como na Aviação, não existe “trabalho simples” : é uma área onde qualquer pobretão quer o melhor quando se trata da vida de filha. O Governo tenta engambelar a população dizendo que “seu papel é oferecer uma “Medicina simples, para pobres, uma “Medicina de pés-descalços”. Só que isto não existe, assim como uma pessoa, hoje em dia, não vai aceitar viajar de avião teco-teco ( usado na Segunda Guerra ) , ou viajar numa companhia onde o “avião pode cair”. Em Medicina, mesmo o povão quer o “melhor”, mesmo o povão quer “hospitais”. Simplesmente porque uma “simples gripe”, na verdade, pode ser uma “meningoencefalite herpético-necrohemorrágica comatosa do polo temporal”. Pode ser “gripe mesmo” em 9 a cada 10 casos, e estes 9 casos os “cubanos” poderiam resolver. Mas, para isto, existem “farmácias de esquina” no Brasil todo... O que faz a diferença mesmo é aquele “1 caso entre 10” que nem o farmacêutico da esquina nem o cubano conseguirão resolver. É este caso que servirá de “exemplo”, irá para a mídia, para o Promotor, para o Juiz, etc. Neste momento exige-se a “complexidade médica e hospitalar”, complexidade esta que o Governo, pelos motivos já alencados, nunca irá ter. 

Com um sistema destes, caro leitor(a), você pode me perguntar : ora, se fosse assim mesmo, só ficariam no SUS os “seres passivos”... E, como você diz, se os médicos, no geral, são tão ativos, por que ainda há muitos no SUS ? As respostas seriam : 1) não há tanto médico assim, tanto é que o Governo está tendo de recrutar cubanos que nem médicos são (são formados em cursos rápidos, não conseguem validar seus diplomas, etc ). 2) está tendo de criar inúmeros mecanismos para obrigar os médicos a trabalharem no SUS, p.ex., obrigando estudantes a prestarem serviço civil obrigatório no SUS, obrigando residentes a passarem pelo SUS, obrigando especialistas a passarem pelo SUS, etc. 3 ) De fato, muitos que ficam no SUS ( há numerosas exceções ) são aqueles mais “passivos” mesmo, p.ex., início ou fim de carreira, doentes físicos, idosos, doentes mentais, toxicômanos, transtornos de personalidade, borderlines, etc. Ou seja, alguns “seres frustros” que não conseguiriam respirar “lá fora”, ou seja, no “agressivo e competitivo” ambiente do “mundo real”. 4) os “médicos sadios” que estão no SUS estão sempre em “regime temporário”, sempre querendo oportunidade melhor para sair, querendo especializar-se para poder sair, ou então, como o cárdio-cirurgião acima, se estiverem ganhando bem lá, deixam o serviço às moscas para irem trabalhar ( mesmo de graça, ou quase de graça ) em outro lugar. 5) ou então, estão simplesmente lá, estressados, revoltados, indignados, completamente frustrados por “não poderem fazer o que sabem e sofrerem tanto estresse por isto” ( afinal é gente morrendo em suas mãos enquanto os verdadeiros responsáveis pelo descalabro, os políticos e governantes, dormem tranquilamente, em suas casas, sem serem incomodados) . 6) Mas, mesmo após o Governo ter esgotado todos os seus mecanismos para “obrigar os médicos irem para o SUS”, ele tem um enorme plano B, uma enorme “carta na manga” : a destruição da prática médica privada, a destruição dos hospitais privados, etc ( o Governo faz leis, regras, impostos, exigências, pesados demais, e que ele mesmo não cumpre, e assim vem acabando, silenciosamente, muito paulatinamente, com a prática médico-hospitalar liberal ) . Quando ele conseguir isto, ou seja, a “destruição da Medicina e Hospitais” fora do Governo, aí ele terá um “mecanismo para forçar todos irem para o Governo” : a falta de outras oportunidades. 7) neste ponto, médicos e pacientes serão vítimas de uma enorme decadência no atendimento médico-hospitalar, decadência esta, da qual estamos assistindo apenas o começo. 
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Marcelo Caixeta, psiquiatra. Escreve às terças e domingos. Diário da Manhã - www.dm.com.br ( seção “Opinião Pública”).

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