quinta-feira, 3 de maio de 2012

A URGENTE NECESSIDADE DO "NÃO"


Outro dia discutia com alguns colegas que, considerando o assustador cenário nacional, o profissional médico hoje seria tão ético quanto a sua capacidade de dizer convictamente a palavra “não”. Não que nós gostemos, claro, mas é que praticamente tornaram o exercício da medicina inviável sem este advérbio de negação. Obviamente que previ que em alguns anos ele seria tema de uma disciplina aula de medicina: "Negativologia Clínica". Aí ouvi a piadinha de graça: “Então vocês do INSS são muito evoluídos! Negam tudo!”. E não adiantou dizer que aproximadamente 80% dos requerimentos são deferidos – o Não é o que tatua a alma.

Outro dia um colega anestesista suspendeu um procedimento plástico porque o paciente havia tomado café e, após explicar sobre os riscos eventuais, escutou do paciente: “Olha aqui! O Senhor está sendo muito radical! Paguei R$12.000 já e Eu não saio daqui sem ser operado.E mais vou lhe processar!” (ser processo por querer ajudar alguém é um dos efeitos colaterais da ética). É isso. Parece que o exercício da medicina, com cuidado e responsabilidade, está cada vez mais diretamente ligado a capacidade do profissional médico dizer um “não” bem dado. Estes dias alguns colegas colocarão nos currículos “Pós-Graduação, Mestrado, Doutorado em Negativoterapia  (com letras miúdas)”.Vai ser marketing de sucesso o doutor que se garante no  monossílabo.

“Não atendo sem prontuário, sem caneta, sem papel, sem água, sem ar-condicionado e também sem cafezinho quente (afinal ninguém é de ferro)”. “Não atendo encaminhamento de vereador, fora da agenda, sem lenço, sem documento e sem comprovante”. “Não interno nem carimbo controlado e nem dou atestado sem examinar”. "Não recebo fiado nem aceito escambo e nem cantada pra desconto". “Não opero sem fios de sutura, sem foco, sem UTI e sem auxiliar”. “Não trabalho sem cadeira, armário, ambulância, papel higiênico e sem porta no banheiro". “Não como munguzá com sal e nem macarrão com ovo pela quinta vez na semana”. "Estão aí as condições"... Infelizmente a Medicina é a arte de trabalhar o seu não de cada dia sem se estressar. É a arte de ser chato e ainda assim conseguir pagar as contas no fim do mês.

“Mas como assim o Senhor não vai passar nada?” disse. “Não precisa pode ir” disse o médico seguro. “Tome Ginkgo Biloba” disse o que tem medo de desagradar. “Tome este antibiótico caríssimo e volte em 2 dias com esta ressonância, mas saiba que vai dar normal. Fique tranquilo!” disse o colega “Estraga tudo” prevendo o óbvio. É exatamente assim. Mas o "Não" não pode ser de qualquer forma. Para dizer um não é preciso, antes de tudo, ter muito estudo, disciplina e coragem. As negativas na medicina sempre pesaram mais que as afirmativas. Dizer que morreu é mais pesado; Talvez por isso todas as auditorias do INSS ratificam uma após a outra que os laudos de indeferimento são muito mais completos e adequados as “normas”.

Infelizmente os médicos têm sido empurrados para uma encruzilhada onde são obrigados a escolherem se querem seguir éticos em seus preceitos, porém estressados por overdose de chatice ou nos limites da ética sorridentes, tranquilos e, claro, com gordurosas produções no fim do mês. O mais curioso é que absolutamente ninguém respeita mais uma decisão em forma de “não”: paciente, acompanhantes, não-médicos, gestores, autoridades e até a mãe do perito (esta foi para um colega que levou sermão da própria mãe para autoriza mais benefícios). Deveria haver uma campanha: “Doutor aprenda a dizer não” ou "Não faz bem a saúde" ou “Mil e uma formas de dizer e ouvir um não sem se machucar”.

No fim o corpo médico do Brasil está doente engasgado com uma palavra de três letrinhas quando Peritos, médicos do trabalho e assistentes estão todos incapacitados. Incapazes de dar um “Não” que salvaria a si mesmo, o seu paciente e própria sociedade. E não esqueça: "A sociedade tem o médico que merece, não o que precisa."

Um comentário:

Marcelo Rasche disse...

Eu não me sinto orgulhoso, mas como médico plantonista eu digo "não" muito mais vezes do que eu gostaria.

Acabo sendo um chato.