terça-feira, 24 de abril de 2012

JORNAL DO SENADO

24/04/2012 - Saúde - Proposta
Projeto do Ato Médico deflagra disputa em profissões da saúde

Os profissionais da saúde se engalfinham: enquanto os médicos tentam criar uma lei para delimitar seu campo de atuação, seus colegas de outras formações brigam para derrubar o projeto. O Jornal do Senado entrevistou mais de uma dezena de pessoas, entre profissionais da área, senadores e acadêmicos, para explicar esse conflito sem precedentes

Um projeto de lei com meros oito artigos detonou uma guerra no mundo da saúde. Colocou médicos num lado. E, no outro, enfermeiros, psicólogos, fisioterapeutas, nutricionistas e todos os demais profissionais da saúde.

A diplomacia foi posta de lado. As acusações são de prepotência, reserva de mercado e até exercício ilegal da medicina.

Conhecido como Ato Médico, o projeto enumera quais tarefas cabem unicamente aos médicos e quais podem ser compartilhadas com outros profissionais. É, no jargão das leis, a regulamentação do exercício profissional.

O texto diz que só o médico pode aplicar anestesia geral, fazer cirurgia, internar o doente, dar-lhe alta. Por outro lado, permite a outros profissionais aplicar injeção, fazer curativo, coletar sangue. Nada mais lógico.

O Ato Médico está no Senado e teria sido aprovado muitos anos atrás se não fosse por uma linha — a que afirma que só o médico, e mais ninguém, tem autorização para diagnosticar uma doença e decidir o respectivo tratamento.

Os não médicos gritaram, acusando os médicos de tentar usurpar-lhes atribuições.

Eles entendem que o psicólogo não poderá diagnosticar uma depressão e tratá-la com psicoterapia, que o fisioterapeuta não poderá identificar uma lesão e revertê-la com exercícios, que o nutricionista não poderá diagnosticar uma carência de nutrientes e curá-la com vitaminas.

O Ato Médico, na visão deles, proíbe os pacientes de buscar por conta própria o psicólogo ou o fonoaudiólogo. Precisarão ir ao médico. Só ele terá poder para identificar a doença e, se julgar necessário, encaminhar os pacientes a outro profissional.

— Certos setores da medicina são prepotentes. Acham que os outros profissionais devem se subordinar a eles. Acreditam ser os únicos capazes de cuidar dos pacientes — afirma o presidente do Conselho Federal de Psicologia, Humberto Verona.

O Código Penal é categórico: exercer a profissão de médico sem autorização legal é crime, e a pena chega a 2 anos de detenção. Os não médicos temem ser presos por tão somente desempenhar seus ofícios.

Só os dentistas ficaram fora da guerra. O texto diz que a lei não os afetará, já que têm atribuições semelhantes às de médicos, como fazer cirurgia e receitar remédio.

Nos tribunais

As entidades não médicas prometem recorrer ao Supremo Tribunal Federal caso o Ato Médico seja aprovado nos termos atuais. Chegaram a organizar protestos de rua. Na internet, a militância disparou fotos que mostram um professor de educação física correndo ao lado de um atleta, um psicólogo com um paciente no divã e um farmacêutico entregando remédio a um cliente. O profissional é sempre o mesmo: um médico de jaleco, em trabalhos que não são seus. Ao lado, uma provocação: “Médicos, diagnostiquem sua própria doença: complexo de superioridade”.

A presidente do Conselho Federal de Fonoaudiologia, Bianca Queiroga, crê que “interesses mercadológicos” movem os médicos — desejam um campo de trabalho mais amplo.

Caso atinjam esse objetivo, explica o presidente do Conselho Federal de Fisioterapia e Terapia Ocupacional, Roberto Mattar Cepeda, eles acabarão com a multidisciplinaridade nos hospitais — impedirão que as decisões sobre o doente sejam tomadas em conjunto por médico, fisioterapeuta, psicólogo, nutricionista etc. A palavra final, ele teme, caberá sempre ao médico.

Afirma o presidente do Conselho Federal de Enfermagem, Manoel Carlos Neri:

— Por muito tempo, o trabalho do médico foi solitário. Mas agora os tempos são outros. Ele precisa aprender a trabalhar em equipe.

A medicina é um dos ofícios mais antigos da Humanidade. Remonta à Grécia do século 5º a.C. Hipócrates, o “pai da medicina”, abalou as crenças da época quando assegurou que os males que flagelavam os homens não eram castigos dos deuses, mas apenas reações do corpo à alimentação ruim e ao sedentarismo.

Em seus livros, ele listou doenças, descreveu sintomas e indicou tratamentos — um feito e tanto para o mundo antigo.

A odontologia é tão remota quanto a medicina. Há evidências de que no século 6º a.C. os etruscos já faziam extrações e inseriam dentes postiços de ouro no lugar. O próprio Hipócrates abordou as doenças dentárias — a odontologia era um ramo da medicina.

Séculos

Em boa parte da história, os médicos foram os únicos capazes de curar. Séculos se passaram até que eles tivessem de dividir a saúde com outros profissionais.

A farmácia surgiu por volta do século 10, também como apêndice da medicina. Médicos e farmacêuticos se separariam no século 18. Depois, veio a enfermagem. O mundo conheceu as enfermeiras no século 19. Elas debutaram de modo heroico, salvando os soldados feridos nos campos de batalha da Guerra da Crimeia, na Rússia. As demais profissões da saúde são ainda mais recentes.

No Brasil, os médicos são os únicos profissionais da saúde que ainda não têm o campo de atuação regulamentado. Os psicólogos aprovaram sua lei em 1962. Os fonoaudiólogos, em 1981.

Em 2002, dois então senadores — os médicos Geraldo Althoff e Benício Sampaio — redigiram projetos que preencheriam a lacuna (PLSs 25/02 e 268/02). Como tratavam do mesmo tema, tramitaram unidos. Dez anos depois, jamais alcançaram consenso.

Na outra ponta do cabo de guerra, os médicos negam todas as acusações. Argumentam que, com o Ato Médico, querem apenas impedir que outros profissionais invadam a medicina e coloquem os pacientes em risco.

São tênues, sem dúvida, as linhas que separam a endocrinologia da nutrição, a ortopedia da fisioterapia, a medicina esportiva da educação física, a psiquiatria da psicologia. Mas não é bem isso o que atormenta os médicos. Eles estão mais preocupados, na realidade, com a enfermagem.

Em 2002, uma resolução do Conselho Federal de Enfermagem deu aos enfermeiros do Programa Saúde da Família (equipes de saúde que vão de casa em casa) poder para solicitar exame, diagnosticar doença e receitar remédio.

A enfermagem, entretanto, ficava restrita a algumas doenças de tratamento inequívoco, como resfriado, dor de ouvido, tuberculose, hanseníase, hipertensão, diabetes etc. Ainda assim, os médicos se sentiram agredidos. Explica o presidente do Conselho Federal de Medicina, Roberto d’Avila:

— Avançam sobre nossa área. Queremos um regramento que diga que diagnosticar doença e prescrever remédio são funções nossas. Estudamos de 8 a 11 anos para ter uma competência que eles [enfermeiros] não têm. O Ato Médico dá segurança à sociedade.

Os médicos correram aos tribunais pedindo a anulação da resolução. Em decisão liminar (provisória), a Justiça lhes deu razão. Antes da decisão final, porém, os enfermeiros decidiram anular sua própria norma.

De qualquer forma, a lei que regulamenta a enfermagem, de 1986, já afirma que o enfermeiro de uma equipe de saúde pode receitar “medicamentos estabelecidos em programas de saúde pública e em rotina aprovada pela instituição de saúde”. Nisso, o Ato Médico não pode mexer.

O presidente do Conselho de Enfermagem responde que os enfermeiros têm, sim, “competência legal e técnica” para receitar remédios preestabelecidos. Segundo ele, isso permite à rede pública atender mais gente.

— O problema do Ato Médico é que, em vez de tratar só dos ­médicos, cuida das outras profissões. Mas elas já estão regulamentadas. É um espelho da arrogância dos médicos. Em países desenvolvidos, os enfermeiros até aplicam anestesia. Aqui, de tão corporativistas, os médicos jamais permitiriam isso — diz Neri.

O presidente do Conselho de Medicina não aceita o argumento. Para ele, enfermeiro com prerrogativa de médico só faz sentido em países miseráveis da África, onde é extrema a escassez de médicos e a população vive rodeada de epidemias mortais. Esse não é, diz d’Avila, o caso do Brasil:

— Deixar que enfermeiro diagnostique e trate coisas menores, como pneumonia, otite e meningite, é fazer medicina de pobre para pobre. Quem tem dinheiro é atendido por médico no hospital privado, mas quem é pobre é atendido por qualquer um no posto de saúde. Para o gestor público, é ótimo, porque gasta menos dinheiro. Para nós, é absurdo. Denunciaremos sempre.

Doutor

Roberto d’Avila lembra que, alguns anos atrás, enfermeiros e fisioterapeutas aprovaram normas para que fossem chamados de “doutores”. Para o Conselho de Enfermagem, a ausência desse título leva os pacientes a pressupor que o enfermeiro é “subalterno”.

— O médico é chamado de doutor há séculos. Mas por costume, não por resolução. Num posto de saúde, você vê todo mundo vestido de branco, de estetoscópio no pescoço e com a palavra “doutor” no crachá. Você não sabe quem é médico, enfermeiro ou fisioterapeuta. Isso é bem sintomático. Eles querem, sim, ser médicos. Mas não são.

Nessa guerra, os médicos também fazem campanha. A corporação dos patologistas distribuiu uma cartilha com o seguinte argumento: “Com quem uma gestante prefere fazer o pré-natal: um médico ou uma enfermeira? Com quem prefere fazer o parto: um médico ou uma parteira? Quem deve prescrever medicamento para nossos familiares: um médico ou um farmacêutico?”.

As trincheiras voltarão a ser armadas no Senado. Amanhã, numa audiência da Comissão de Educação, os dois lados tentarão, de novo, fechar um acordo. O debate foi proposto pelo atual relator do texto, senador Cássio Cunha Lima (PSDB-PB).

— Briga e conflito não resolverão o problema — afirma ele, que é formado em direito.

Da Comissão de Educação, o caminho até a sanção (ou o veto) da presidente Dilma Rousseff será relativamente curto. Faltarão uma comissão e o Plenário.

Dos dois projetos de 2002, só o de Geraldo Althoff foi debatido de fato. O texto confiava ao Conselho de Medicina a missão de delimitar o campo de atuação — um cheque em branco para que os próprios médicos enumerassem suas tarefas. Foi ali que os dois lados começaram a se engalfinhar.

Quando foi analisado no Senado pela primeira vez, o Ato Médico teve entre seus relatores Lúcia Vânia (PSDB-GO), que é jornalista. Ao longo de dois anos, ela escutou todas as profissões. No fim, concluiu que o texto de Althoff deveria ser refeito. Aprovou um projeto completamente novo. A Câmara não mexeu nas linhas centrais. Por isso, segundo a senadora, o temor dos não médicos é “descabido” hoje:

— Fazia sentido no passado. O projeto foi redigido por um médico [Althoff], teve um médico como primeiro relator [Tião Viana] e fazia reserva de mercado para os médicos. Os demais profissionais, com razão, entraram em pânico. Mas as falhas foram reparadas. Se há preconceito hoje, é por culpa do projeto original.

O último relator no Senado foi Antonio Carlos Valadares (PSB-SE), que é formado em química e direito. Ele concorda com Lúcia Vânia. Pela versão atual, não são exclusivos do médico “os diagnósticos funcional, cinésio-funcional, psicológico, nutricional e ambiental, e as avaliações comportamental e das capacidades mental, sensorial e perceptocognitiva”. Esse trecho, assegura ele, resguarda todas as demais profissões:

— Na prática, não muda nada. Não vai ter médico com tarefa de psicólogo nem psicólogo com tarefa de médico. Quem critica é porque não leu. Se leu, não quis enxergar.

Mérito

Polêmicas à parte, o Ato Médico tem um mérito inquestionável: acaba com o jogo de empurra que aparece nos hospitais nos momentos mais críticos.

É comum, por exemplo, que enfermeiros recusem a tarefa de introduzir um cateter numa veia “difícil” — idosos e obesos têm veias assim — sob a alegação de que é atribuição médica. É igualmente corriqueiro que médicos se neguem a fazer a limpeza de uma ferida subcutânea que contém tecidos necrosados argumentando que curativo cabe à enfermagem.

— Com o Ato Médico, as responsabilidades ficam mais claras. Por um lado, o enfermeiro pode, sim, introduzir um cateter. Por outro, o médico não pode passar adiante certos procedimentos que atinjam o tecido subcutâneo — diz Sebastião Moreira Júnior, médico e consultor do Senado.

Ele usa a expressão “mais claras”, e não “totalmente claras”, porque o Ato Médico deixa alguns pontos obscuros. Um deles é a acupuntura, que não está na proposta. Um mês atrás, os médicos conseguiram na Justiça Federal impedir que farmacêuticos, psicólogos e fisioterapeutas também exerçam a acupuntura. A briga não acabou. Os profissionais afetados recorreram da decisão.

Na avaliação de Élida Hennington, médica sanitarista da Fundação Oswaldo Cruz, os dois lados empregam todas as munições porque a regulamentação de uma profissão garante “controle de mercado” e “blindagem contra a invasão de outros profissionais”.

— Mas essas profissões não podem nunca esquecer que nenhuma delas é suficiente para enfrentar sozinha toda a ­complexidade da saúde humana.

Fonte: Jornal do Senado

4 comentários:

HSaraivaXavier disse...

Eu jamais me anestesiaria com Não Médico em qualquer lugar do mundo. Aliás ilude-se quem pensa que EUA, Europa e Japão também não possuem problemas e alguns bem graves na área da saúde. Eu também não levo filho meu para PS que só tem Não-Médico. Nem qualquer querido. Não quero também para nenhum cidadão. Se isso for preconceito eu sou assumido e de carteirinha. Não cabe politicagem ne boas maneiras quando o assunto é tratar da minha vida. Eles - anti-médicos - que se tratem entre si. E, claro, os deputados que aprovarem os seus caprichos (o que eu duvido muito).

Snowden disse...

Fisioterapeuta diagnosticar e tratar lesao muscular e quado virar m*rda passa pelo Medico;
Psicólogo tratar Psicose ou Esquizofrenia com "papo cabeça" também não da...
Fonoaudiologo tratar otite e ivas ai quando virar empiema pleural ou uma mastoidite purulenta passa a bola pro medico...e assim sucessivamente...fala serio!!!
Todas as profissões da saúde foram regulamentadas e medico nAo se meteu, agora a do medico querer ser regulamentada e todo mundo quer meter o dedo! NAo trata-se de querer ser superior e sim que as outras tem muitos que queriam ser medico e nAo conseguiram ai fica o complexo de inferioridade, nAo pra todos mas pra uma parte!
E Heltron, nem a pau faria uma anestesia com não medico! NAo da pra comparar com um indivíduo que estudou pelo menos 9 anos em periodo integral com um que estudou 4 ou 5 meio periodo...a formação é outra!

Eduardo Henrique Almeida disse...

Como dizem, o médico é arrogante e precisa ser humanizado no chicote.
A profissão mais nobre de todas é admirada, mas, sobretudo, INVEJADA.
Que mãe não quer um filho médico? Quem não tem um parente que não conseguiu passar no vestibular de medicina e, aí, seguiu para uma das profissões para-médicas? Fica o recalque.Sentimos isso na pele todos os dias.

Adriano Battista disse...

O negócio é estudar meio período e depois se tornar juiz ou promotor de "justiça". Ganha-se muito mais, trabalha-se muito menos, estressa-se muito menos, e ninguém fica se metendo no que você faz ou deixa de fazer (e há blindagem, não pode ser processado, e a imprensa nunca vai importunar)... E ninguém vai reclamar do seu "complexo de superioridade"!